sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Minha avó

Minha avó morreu dia 20 de novembro de 2013, aos 96 anos. Em casa, naturalmente, com minha mãe ao lado, segurando sua mão. De todas as perdas, a dela foi a mais fácil de lidar, já que a longevidade mais que nos preparou para sua ausência. Só que, estranhamente, sobre ela não consegui falar nada depois. Não escrevi, não comentei muito, não interagi com sua morte. Só que há algum tempo, tenho pensado que deveria escrever sobre ela, já que essa é a forma que conheço de refletir. A primeira coisa que me cutuca é o porquê da resistência em concretizar seu obituário particular. Talvez porque a morte dela foi desejada, já que sua idade estava pesando demais. Ela mesma, há muito tempo, falava em morrer e dizia, weberianamente, sem ódio ou amor "vocês pensam que viver não cansa?".Mas também desejei que meu pai descansasse e parasse de sofrer, e escrevi sobre e para ele no dia de sua morte. Então o quê? Talvez pelo fato de não ter qualquer ponta de frustração por sua morte, já que a eternização da vida não parece ser algo muito prático. Mas agora já passou o tempo da normalidade e eu estou conseguindo interagir com sua ausência. E posso, finalmente, lembrar e falar dela.
Minha avó era linda e vaidosa. Sempre foi, e graças a ela eu aprendi que "futilidade" tem um lugar na vida e serve para dar leveza. Com ela, direta ou indiretamente, aprendi a apreciar coisas bonitas. Copos de cristal, colchas de crochê, "cobertas de mesa", como se diz no sul, móveis e coisas assim. Minha avó sempre esteve muito junto e são inúmeras as histórias que tenho dela e dela comigo. Como quando ela me ensinou a ir ao banheiro sozinha. Apesar de eu ser uma criança de dois a três anos, lembro do banheiro de sua casa e da estratégia que ela adotou: me dar gibis para folhear e sossegar. Hoje em todos os banheiros da minha casa têm livros, revistas e gibis. E quando ela levava café na cama para mim e minha irmã porque estava muito frio em Caçador (cidade no oeste catarinense) para levantarmos e irmos para a cozinha. Até hoje, café na cama é um sinal de afeto em minha casa. Ou quando, de noite ela esquentava um tijolo no fogão a lenha, embrulhava em uma toalha e colocava em nossos pés para dormir, coisa que hoje faço no sítio em Cunha, onde também faz muito frio. Aliás, termos um sitio em Cunha por si só é uma lembrança de meus avós, pois foi em Caçador que aprendi a conviver com araucárias e pinhões. Mas as lembranças e afetos não são apenas geográficos. São também de vida,
por exemplo quando, aos meus nove anos, ela exigiu que eu me defendesse do meu primo, que costumava me bater (apesar de sermos ótimos amigos).Forneceu-me um tamanco e disse: "bate nele com isso que ele nunca mais vai te bater". Eu fiquei com receio do resultado e acabei não usando o tamanco. Mas a sua atitude de exigir que eu aprendesse a me defender é inesquecível. Talvez tenha sido a primeira vez que eu tenha me dado conta dessa necessidade. Minha vó ria de chorar e adorava colocar palavrões no jogo de palavras cruzadas. Era uma ótima mentirosa, como suas irmãs, e usava a mentira para se defender num mundo nem sempre muito fácil para mulheres. Quando eu fiz 15 anos, ela e meu avô me deram uma pulseira de debutante. O que meu avô nunca soube, é que o preço que ela lhe passou era inferior ao que a pulseira realmente valia, pois se soubesse talvez não quisesse comprá-la. O que faltava, ela pagou "desviando" parte do orçamento doméstico -- coisa que fazia com certa regularidade. Só anos mais tarde, em terapia, dei-me conta de como a presença constante de minha avó na vida contrabalançou o excesso de seriedade dos meus pais. O excesso de valorização do trabalho e o excesso de valorização das virtudes, como nunca mentir. Não que eu seja uma mentirosa contumaz como minha avó, que partilhava do refrão das irmãs Sá Britto: "a verdade é uma coisa muito séria para ser usada de forma tão indiscriminada". Assim falando, parece que minha avó não tinha virtudes. Ao contrário. Ela era extremamente generosa e preocupada com todos a sua volta. E muito disponível para o outro, coisa que marcou a sua existência e que, com certeza, a da minha mãe e, por tabela, a minha e de minha irmã. Foi minha avó que me ensinou a rezar. E ela não era religiosa, não frequentava missa nem nada. Mas me ensinou versos simples, voltados a Nossa Sra. e ao Anjo da Guarda, que até hoje, com todo meu agnosticismo, eu cultivo. Minha avó costumava acender velas para pedir graças dentro de sua visão particular de religião. E eu, com toda minha descrença, sempre que preciso acendo velas, porque só o fato de fazê-lo me liga a alguém que é tão importante em minha vida. Eu poderia escrever indefinidamente sobre minha avó. Mas acho que a foto que tiramos juntas há poucos anos, talvez seja mais significativa. Ali eu vejo uma mulher velha, linda e orgulhosa. E uma mulher madura, que está com cara de criança porque está com sua amada vó. 

2013

Passou e eu nem escrevi no Blog. Aderi ao Face e acabei resumindo-me. Este ano, pretendo retomar, pq tem coisas que poucos caracteres não suportam. Ou não deveriam.